6 de jun. de 2013

O legado de Maria

Maria saiu em uma manhã de inverno da casa de pijama e chinelos, andando a passos lentos e pouco espaçados entre si, como se estivesse em muito adiantada para seu destino. Mas não havia destino, pelo menos não preciso ou conhecido, nem hora certa pra chegar lá. Na verdade, ninguém havia jamais voltado do lugar para o qual planejava ir - alguns diziam já ter ido e voltado, mas a prova empírica que sustentava tal informação tinha o ônus de só ser conhecida por eles mesmos, e também de poder ser facilmente desmentida por outras teorias sobre processos psíquicos ainda um pouco obscuros à ciência e altamente predispostos a integrarem crendices.

Havia feito este mesmo percurso umas cinquenta vezes, com o mesmo destino pretendido, os mesmos pensamentos, o mesmo passear inebriado e as mesmas delusões oníricas - cavalos alados, serpentes velozes multicoloridas, ondas de vinte metros de altura - a lhe passarem pela mente, projetadas como um filme sobre o interior escuro das pálpebras fechadas. A única diferença era que, desta vez, não trazia dinheiro, nem chaves, nem identificação, nem bilhetes de transporte, nem celular, nem nenhum estorvo que a pudesse fazer desistir de sua sina. O destino da viagem estava definitivamente sob seu próprio julgamento.

Pensava enquanto ia caminhando qual era o destino mais propício para chegar a este seu destino. Escolheu o mais próximo do céu nas imediações: subiu as escadas dos 20 andares do edifício comercial muito lentamente, quase parando, parou para arfar depois da metade, continuou. Levou uma vida para chegar ao terraço, onde a aceleração da gravidade pudesse levar-lhe a vida. Encostada na grade do cume da montanha de aço e cimento, olhou para baixo, para o chão que parecia cada vez mais próximo e a atraía com força astronômica.

Trepou sobre a grade, e resolveu não pensar sob pena de desistir novamente. Apenas soltou os braços e, agora, seu único obstáculo era a resistência do ar. Flutuou como um anjo, leve como uma pluma, acima de todas as dezenas de cabeças que presenciavam o espetáculo com os olhos esbugalhados pelo terror na calçada logo abaixo. Parecia pronta para de repente mudar sua trajetória com uma variação de ângulo acentuada, e alçar um longo voo para algum lugar paradisíaco e muito distante, quando seu corpo estatelou-se no chão e explodiu como um balão inchado de carne.

As crianças choraram enquanto seus pais tapavam seus olhos. A comoção durou o tempo necessário para a chegada dos bombeiros, e algumas horas mais. A da família, alguns anos.

Os restos foram enterrados.
Sua massa se decompôs em átomos que retornaram ao pó.

O pó foi ao longo dos anos se desfazendo, também.

Não teve a mesma sorte - sorte? - de Jesus ou Frida Kahlo, de ter sua marca perpetuada por numerosos registros escritos e pictóricos até muito depois da posteridade. As fotos em papel se perderam dos álbuns de família ao longo dos anos, indo parar em um incinerador por acidente antes de virtualizadas, assim como todos os registros de sua existência, da certidão de nascimento à de óbito, logo depois, e propositalmente.

Só centenas de anos após a extinção de toda a humanidade, um punhado de átomos de carbono que outrora compuseram a massa de um dito organismo senciente que recebera a alcunha de Maria e morrera no chão de uma via que na época se chamava rua, por um raríssimo acaso vieram a se reagrupar no mesmo lugar do tempo e do espaço. Tiveram a sorte de fazer parte de um mesmo conjunto orgânico que o organismo havia um dia chamado de semente.

Dela, nasceu uma flor, como milhares de outras no mesmo campo.

Apenas mais uma.